Luís Tourinho

Seu livro Gymnasio São Salvador já traz na capa uma informação que nos interessa: o legado educacional da Família Tourinho. Quais foram os Tourinhos que participaram da criação do Gymnasio, em 1885? Eles atuavam na área de Educação?

LT: Os principais Tourinhos que participaram da criação do Gymnasio São Salvador foram os irmãos Demetrio Cyriaco e Adolpho. O primeiro, médico de formação, era professor da Faculdade de Medicina da Bahia e de grego no Lyceu da Bahia. Como prova de sua grande relevância intelectual na época, foi pioneiro da Psiquiatria no Brasil, tornando-se o fundador e primeiro diretor do Asilo São João de Deus, em Salvador. Nos estudos helênicos, foi o primeiro a traduzir diretamente do grego para o português brasileiro as clássicas obras de Homero, Ilíada e Odisseia. Como retribuição, foi nomeado conselheiro do Imperador, entre outras atividades públicas, boa parte delas ligadas à Educação. Ele teria influenciado o seu irmão mais novo Adolpho, juiz no interior da Bahia, que preferiu abandonar a carreira de magistrado e adentrou a área educacional, fundando na capital baiana, no ano de 1885, o São Salvador, tornando-se o seu primeiro diretor.

 

O que acontecia naquele momento na história do Brasil e da Bahia que estimulou o surgimento de uma escola de excelência? Estávamos no final do Império. Isto teve algum significado para a criação do Gymnasio?

LT: Aprofundando-me sobre a história da educação do Brasil durante o curso de mestrado, percebi que o contexto histórico influenciou bastante para o surgimento do Gymnasio São Salvador. Desde 1878 o Partido Liberal subira ao poder liderado por importantes figuras políticas, de modo especial os “bahianos” Conselheiro Antonio Saraiva, Conselheiro Manoel Pinto de Souza Dantas e seu pupilo Ruy Barbosa. É importante mencionar que o Conselheiro Demetrio Tourinho era também filiado ao Partido Liberal, chegando ao cargo de deputado provincial (equivalente hoje a de deputado estadual) e tendo sido um dos fundadores na década de 1850 do “Diário da Bahia”, principal jornal ligado aos liberais durante o Segundo Reinado (1840-1889). Uma das pautas do Partido Liberal naquele período era a liberdade de ensino, obtendo importantes reformas, como a denominada “Reforma Leôncio de Carvalho”, de 1879. Ela seria regulamentada na Bahia anos depois, em 1881, por Antonio Bulcão, 3º Barão de São Francisco, que na época ocupava o cargo de Presidente da Província da Bahia (equivalente hoje a de governador). A partir disso, com essa maior liberdade educacional, surgiram importantes estabelecimentos educacionais privados, geralmente de ensino secundário (equivalente hoje aos ensinos Fundamental II e Médio), que formaram durante décadas diversas gerações que contribuíram para a formação da Bahia e do Brasil. Portanto, a criação do Gymnasio São Salvador vem daí.

 

Pelos nomes que passaram pelo Gymnasio, parece ter havido um modelo pedagógico especial. O que o diferenciou dos demais daquela época?

LT: Realmente, o fundador e primeiro diretor Adolpho Tourinho criou o Gymnasio São Salvador tendo em vista ser uma instituição de excelência desde o início. O primeiro diferencial foi a rigorosa seleção dos professores, sendo quase todos docentes pertencentes anteriormente às faculdades de Salvador e do Lyceu da Bahia, na época um dos melhores colégios do Brasil. Era como se você hoje contratasse professores universitários para ministrarem aulas aos adolescentes.

Outra medida tomada por Adolpho Tourinho foi a aquisição de laboratórios e equipamentos de diversas áreas (química, biologia e física) trazidos da Europa, especialmente da França. De fato, foi um volumoso e arriscado investimento, pois alguns deles foram considerados superiores aos existentes nas faculdades da época. Comparando com os dias de hoje, era como se um colégio privado tivesse um laboratório científico mais avançado do que o de uma universidade federal.

Por fim, mas não menos importante, um grande diferencial foi a Família Tourinho ter abraçado a iniciativa do Gymnasio São Salvador não apenas como um simples negócio lucrativo, mas como uma verdadeira missão e vocação. Adolpho, e posteriormente todos os seus numerosos filhos, junto com os seus netos, sobrinhos e primos, não apenas instruíam os seus alunos, mas também os educaram. Como Adolpho e sua família moravam no mesmo prédio onde funcionava o colégio, isso permitiu que lá funcionasse também como um internato, vindo alunos do interior. Portanto, os Tourinhos não se viam apenas como professores de seus alunos, mas também como pais, perpassando por uma educação intelectual, afetiva, física, moral e religiosa. Era essa educação integral, considerada como um verdadeiro sacerdócio, talvez o maior diferencial de todos do Gymnasio São Salvador em relação às outras instituições.

 

Vi que o livro era sua dissertação de mestrado. Você se surpreendeu com o que encontrou e por isso decidiu publicar um livro? Ou foram os comentários que recebeu?

LT: Na realidade, iniciei o mestrado já pensando na publicação em livro. Havia uma tradição oral familiar em torno do Gymnasio que eu escutava desde criança. Além disso, muitos dos documentos e fotos meu pai conseguiu preservar, embora nunca tenha levado adiante a ideia de se redigir um livro sobre o tema. Infelizmente, é natural que tanto essa memória familiar quanto os documentos se percam com o passar dos anos. A redação da dissertação de mestrado e posterior publicação em livro tem como objetivo principal preservar, sistematizar e divulgar o essencial dessa parte da história que pertence não somente aos Tourinhos, mas à Bahia e ao Brasil. Esse é o verdadeiro significado da Tradição: a busca incansável pela transmissão do que herdamos.

Uma professora que participou da banca de defesa da minha dissertação chegou a me questionar dizendo que teria sido mais interessante academicamente se eu desse uma ênfase sociológica e não tanto aos nomes das pessoas. Eu expliquei a ela que como queria publicar em livro, redigi a obra tendo em vista os descendentes das pessoas que fizeram parte do Gymnasio São Salvador – alunos, professores ou funcionários – e não apenas à Academia. Por isso foi proposital a frequente citação de nomes de pessoas, ainda mais que para mim o protagonista da história é a pessoa e não as classes sociais ou qualquer outro conglomerado humano.

 

Você fala em legado da Família Tourinho. Que ensinamentos, que posicionamentos podemos tirar para os dias de hoje?

LT: Acredito que o primeiro deles é existencial. Da mesma forma que o Capitão Donatário Pero do Campo Tourinho, patriarca de nossa família no Brasil, abandonou a sua vida de conforto e “bem-estar” em Portugal, arriscando-se ao chegar em Porto Seguro, e, por isso mesmo, entrando para a história; os Tourinhos do Gymnasio São Salvador sacrificaram as suas vidas em prol do ideal educacional, especialmente Adolpho Tourinho, que deixou a promissora carreira de magistrado, prestigiosa e estável até os dias de hoje, para ingressar numa área instável e quase sempre marginalizada. De certa forma, eles e outros são os nossos heróis, isto é, pessoas que admiramos e tomamos como exemplos a serem seguidos. É com essa consciência que transcende gerações que torna possível enxergar a vida como vocação e missão, e não apenas como um passeio sem rumo definido.

O outro ensinamento muito forte, e presente até hoje em diversos Tourinhos, é esse forte espírito familiar que busca agregar e acolher todos em sua volta, formando uma verdadeira comunidade. Não há alegria maior de um Tourinho do que encontrar um primo, por mais distante que seja. Essa característica tão nossa, talvez originada da cultura do “Recôncavo Bahiano”, foi disseminada aos que passaram pelo Gymnasio São Salvador, local de referência da “Tourinhada” (era assim que os antigos chamavam) durante tanto tempo.

Por fim, fica claro que o sucesso ou fracasso de uma sociedade depende muito da educação dada às novas gerações. Infelizmente, boa parte dos problemas que presenciamos hoje no Brasil, e especialmente na Bahia, provém do fracasso educacional. Isso até virou um clichê. Talvez a novidade seja o fato de que não é possível educar bem os jovens se os próprios professores também foram vítimas dessa má educação. Urge então, inspirados no exemplo dos fundadores do Gymnasio São Salvador, que surja uma nova geração de verdadeiros educadores e, por consequência, de instituições educacionais.